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Foto: Felipe Carneiro / Diário Catarinense
Com sede em Lages, uma organização da sociedade civil e de interesse público ajuda a realizar sonhos de moradores de baixa renda sem acesso nem condições de utilizar os serviços no sistema financeiro tradicional. O casal Neuza e João Varela Pereira faz parte dessa história.
Bill Gates, magnata e criador da Microsoft, diz que “quanto menor a riqueza, menor o incentivo”. Carlos Almar da Silva, autônomo que mora em Lages, no Planalto Serrano, concorda com a afirmação. Há 20 anos, quando pensou em montar uma vulcanizadora nos fundos da casa, Silva sentiu pouca chance de ajuda no mercado financeiro.
Para ele, um paradoxo. Desempregado e com dois filhos pequenos, não tinha renda para empreender. Encontrava-se entre aqueles que, como igualmente sugere Bill Gates, dependem de uma política econômica que beneficie também os mais pobres.
— A gente precisava fazer um empréstimo, ter um pequeno capital de giro e de suporte para trocar os cheques pré-datados. Mas a visão do banco comercial privado não compensava, pois fazia exigências que a gente não tinha como responder — recorda.
Por sorte, diz, foi informado que existia na cidade um “banco que não era bem banco”.
Entrevista: como funciona o Banco da Família de Lages
Trata-se do que é hoje uma Organização da Sociedade Civil e de Interesse Público (Oscip) de microcrédito. Iniciada em 1998, como Banco da Mulher, e por uma iniciativa da Câmara da Mulher Empresária, da Associação Comercial e Industrial de Lages, a entidade tinha como missão ser uma alternativa para pequenos negócios. Hoje, é muito maior que isso. O acesso aos serviços financeiros que possibilita se torna algo essencial para o desenvolvimento econômico também do município. Funciona como uma resposta à exclusão do mercado financeiro, já que as pessoas desta camada social não costumam oferecer as garantias exigidas pelas instituições que dominam o mercado.
O que faz o Banco da Família não é exclusividade. O governo exige que as organizações destinem recursos para o microcrédito. Existe até uma lei do Ministério do Trabalho que obriga instituições financeiras a destinar 2% dos depósitos compulsórios (dinheiro que fica recolhido no Banco Central sem remuneração) à linha.
Silva não sabia, mas a tal organização se baseava no conceito de assistência financeira por pequenos valores. A inspiração vinha do economista indiano Muhammad Yunus, que em 2006 ganhou o Prêmio Nobel da Paz, por popularizar o conceito no mundo a partir de Bangladesh, ainda década de 1970.
Hoje, quem passa na calçada da casa não enxerga, mas nos fundos funciona a vulcanizadora e reciclagem. Carlos e o filho, Sandro, recolhem pneus nas borracharias e transformam em
peças novas. Um pneu zerado custa em torno de R$ 1,6 mil. Os Silva vendem a R$ 600, e ficam com lucro livre de R$ 250.
Todo o trabalho é manual, e o que sobra é levado para uma empresa especializada. A natureza agradece. Um pneu leva 600 anos para se decompor. Se jogado em lixões, na beira de estradas ou amontoados no quintal, podem se tornar criadouro para o mosquito da dengue. Apesar de conscientes com relação ao meio ambiente, não foi esse o motivo que fez pai e filho montarem o negócio.
– Trabalhei muitos anos em uma vulcanizadora e decidi fazer o mesmo. Ter um negócio próprio dá mais autonomia para a família – conta Carlos.
A placa com o nome “Pelego Indústria e Comércio Artefatos Ltda”, na frente da residência, no bairro Santa Helena indica que ali é feita uma atividade que faz parte da cultura campeira. Mas bonito mesmo é ver a satisfação que o trabalho causa no proprietário:
– Eu tenho orgulho de ser um empresário que lida com pelegos – diz Dirceu Antônio Pinto de Lima, 56 anos, há 32 anos na atividade.
Tanto prazer que, em sinal de respeito, o artesão chega a tirar o chapéu da cabeça. É uma reverência ao que considera “coisa sagrada”. Nascido em Anita Garibaldi, ponto de encontro de povoadores paulistas e gaúchos e mais tarde passagem de tropeiros vindos dos vizinhos Estados do Rio Grande do Sul e do Paraná, Dirceu Antônio se mudou para Lages com 21 anos. Criado em uma família pobre e com muitos filhos, cedo foi alertado pelo pai:
“Rapaz, quem ficar na agricultura vai ter muita dificuldade na vida”.
Não ficou. Mudou-se para Lages, onde formou família e por 16 anos foi empregado em uma selaria. Até apostar na vida de autônomo.
– O pobre tem grande dificuldade para abrir um negócio. Primeiro, tem que ser uma coisa que entenda. Depois, que não comprometa a vida da família – argumenta.
No início dos trabalhos, teve que recorrer ao microcrédito. Inicialmente, usou o dinheiro na construção de um galpão e na compra de equipamentos. Depois, para adquirir o produto in natura que compra em um curtume.Encostado em uma pilha de pelegos, o artesão recorda o quanto precisou se superar, mas hoje se orgulha do que faz.
– Para dizer a verdade, gente simples tem até vergonha de entrar num banco.
Foi no período de embaraço que percebeu uma coisa: bancos comerciais não têm agências nas periferias.
Dirceu Antônio encarou a timidez. A questão era achar algo que o ajudasse, atendesse
as reais necessidades. Mas não virasse um problema maior.
– Eu não queria dar calote, mas também não podia ser explorado.
Certo dia, pensava como fazer para investir no comércio quando foi informado sobre o Banco da Mulher (atualmente extinto no país). Foi conhecer, tornou-se cliente e mantém o crédito em dia. Se necessário, recorre. Mas sempre lembrando o que dizem as agentes de crédito: é preciso planejar para não dar o passo maior do que a perna.
As máquinas – uma para limpar a lã, e outra para a lavação, com capacidade para 100 pelegos por hora – foram feitas pelo próprio artesão. Dirceu Antônio trabalha sozinho e tem uma produção considerada grande, de 300 a 350 peças por mês. Unidades ou lotes são comercializados com selarias de Lages e pecuárias de fora, como do Paraná e São Paulo, que compram o produto na porta de casa.
Quando começou a lidar com pelegos, lembra que o couro de ovelha ou de carneiro
com lã era usado quase que unicamente nos arreios do cavalo, para tornar mais macio
o assento do cavaleiro. Hoje, o produto ganhou espaço e faz parte de diferentes estilos
de decoração.
– Tem até colorido, né?
De uma forma ou de outra, diz Dirceu Antônio, sempre com o mesmo objetivo:
– Ir amaciando a vida das pessoas.
Na manhã do último dia 19, uma terça-feira, Valéria Cristina Osório Galon, 43 anos, recebeu uma visita. Eram 10h quando abriu a porta com cheiro de madeira nova para Karina Matos Freitas. O encontro com a agente de crédito tinha como motivo saber se o dinheiro do empréstimo feito ano passado está sendo aplicado conforme o previsto. A moradia com quarto, banheiro e cozinha fica nos fundos do terreno da ex-sogra (o marido de Valéria faleceu) e a construção está quase pronta.
Aliviada por ter deixado o aluguel, a repositora em uma loja de R$ 1,99 está animada. A obra conseguiu sair do alicerce por causa de um empréstimo de R$ 4 mil, o qual já teve 12 parcelas quitadas em dia e um saldo devedor de R$ 2,6 mil. Nada que assuste, pois foi feito dentro de um planejamento que não a sobrecarregue.
Antes era difícil. Para Valéria, o dinheiro gasto a cada mês era como se jogado pela janela.
– Quem paga sabe: o aluguel consome a gente.
Além do desafogo financeiro, já que chegou a comprometer 50% do salário, ela conta que agora sonha em decorar cada cantinho da casa.
– Quando é da gente, até escolher uma torneira para o banheiro nos deixa feliz.
A agente de crédito Karina se disse satisfeita com o que viu. Valéria comprou tijolos, porta e janelas de madeira, piso e forro. Mais uns meses e será feito o acabamento final:
– Meu sonho é que 2019 nos encontrem (tem quatro cachorrinhos e um papagaio) com tudo no lugar e as paredes pintadas.
Valéria vem de uma família pobre. Fez o ensino fundamental e trabalhou como manicure, pois precisava ajudar os pais. Nos anos de casada também morou de aluguel. Além do esforço para manter o pagamento em dia, vivia preocupada com a possibilidade do imóvel ser pedido. Quando lhe é perguntado o que significa ter uma casa, responde:
– Casa é o chão de cada pessoa. É saber que a gente tem um lugar para voltar, um espaço que é da gente. Para Karina, que há 16 anos escuta histórias assim, oportunidades ajudam a fortalecer as pessoas:
– As mudanças na qualidade de vida aumentam a autoestima e elas se percebem capazes de cumprir com os compromissos.
Ao mesmo tempo, diz, ao entrar em contato com a realidade das famílias, ainda que na condição de funcionária, também se sente bem:
– A gente funciona como uma ponte entre o sonho e a chance de virar realidade.
Hoje pode parecer engraçado e até provocar riso ao lembrar certas cenas. Mas não foi fácil criar os filhos tendo um banheiro que era de madeira e ficava fora da casa. Situação que piorava no frio do inverno. É o que diz a costureira Neuza Terezinha do Amaral Pereira, que mora com o marido João Augusto Varela Pereira, no bairro São Sebastião, em Lages.
– Passamos muito trabalho. Eu aquecia água no fogão e usava uma bacia para dar banho nas crianças. Como eles eram pequenos, conseguiam se ensaboar bem, mas para adulto como a gente, era muito ruim – conta Neuza.
O tanque ficava no lado de fora e lavar roupas no frio exigia disposição.
– Agora, não. Temos um banheiro descente, chuveiro e a água sai quentinha. Uso a máquina de lavar e conseguimos fazer uma peça de material, que é a minha lavanderia, e fico mais abrigada – explica Neuza.
Para chegar a essas melhorias, Neuza e João tiveram que recorrer ao microcrédito. A concessão de um valor relativamente pequeno, mas que pode ser renovado à medida dos pagamentos.
– Conseguimos fazer benfeitorias na casa, que era muito velha. A gente caminhava e a cozinha chacoalhava. Agora tem piso e a cobertura foi arrumada, pois chovia dentro – conta João. O casal tem grande preocupação em manter os empréstimos em dia:
– A gente se empenha para não atrasar. Sabemos que assim como nós, outras pessoas precisam ser ajudadas – diz João.
Honrar o compromisso é quase lei. Mesmo quando ocorre algo inesperado. João e Neuza servem de exemplo para explicar a baixa inadimplência, que no caso do Banco da Família gira em torno de 4%. Somada ao olho no olho entre o agente de crédito e clientes, a conduta pessoal faz com que aos clientes priorizem as parcelas, mesmo diante de situações inesperadas.
– Quem não vai aceitar uma oração para receber a proteção de Deus? – pergunta João, para explicar que a boa-fé fez com que uma falsa benzedeira aplicasse-lhes um golpe.
Gente simples e sem malícia, João e Neuza perceberam a trapaça tarde demais: a farsante que eles deixaram entrar na casa de madeira aquecida pelo fogão de lenha já tinha sumido num carro que a esperava na esquina.
Não é fácil ser enganado, diz seu João. Ainda mais quando tudo é conseguido com sacrifício, completa Neuza. Para eles, houve uma espécie de hipnose onde a falsária os confundiu com ladainha e imposição das mãos. Não apenas neles, mas das coisas também. Inclusive, sobre o cartão do banco, que também foi levado.
Ainda que meio paralisados pela ação rápida da mulher, João e Neuza não se omitiram: enquanto seu João foi registrar Boletim de Ocorrência, Neuza telefonou para as rádios da cidade sobre a falsa benzedeira.
– A gente quis alertar o povo. Vá que a vigarista andasse por aí agindo de ma-fé com outras pessoas?
Um pedaço de cobertor. Foi com uma tira da coberta que Maria dos Prazeres Rodrigues Bortolozzo, 52 anos, fez o primeiro par de chinelos da vida. Quase 18 anos depois, calcula que possa empilhar uns 70 mil pares. Maria, que foi babá com 12 anos, teve carteira assinada aos 14 e encarou mais oito anos como fiscal de caixa em supermercado, sempre valorizou o emprego. Mas sempre imaginando que um dia estaria à frente do próprio negócio.
No começo, pensou em fazer pantufas. Mas percebeu que o mercado estava cheio delas. De todos os tipos, com cores e preços variados. Apostou em chinelos. Com um argumento que usa como propaganda:
– Todo lageano precisa de um calçado quentinho para se aquecer no frio do inverno.
A escolha deu certo. A linha de produção vai do número 20 ao 46 e custa R$ 25 o par. Maria tem ponto de vendas, como na tradicional Festa do Pinhão, e já foi procurada por uma grande loja de departamento interessada em revender o produto.
No início, lembra, as dificuldades não se resumiam aos dois filhos pequenos e a ausência do marido, que já trabalhava com caminhão de frete.
O dilema era a falta de dinheiro. Precisava de um empréstimo para conseguir matéria-prima. Afinal, já tinha comprado uma máquina de costura de segunda mão e uma amiga se dispôs a ajudá-la com os moldes. Foi quando uma conhecida falou sobre o Banco da Família. Era 2003. Desde então, já se vão 26 empréstimos.
– O que mais gostei foi da simplicidade. Enquanto o banco comercial te assusta com toda aquela burocracia e papelada para assinar, nesse caso a gente entende o valor a pegar, o número de vezes o e sabe direitinho quando será cobrado – diz.
Maria dos Prazeres aprendeu a dar o passo certo. Começou vendendo chinelos em lojas de R$ 1,99 e no calçadão de Lages. Foram 16 anos em uma banquinha. Atualmente aluga um espaço numa galeria do centro da cidade. A loja permite também vender roupas. Para ela, a iniciativa do banco fortalece a economia local por estimular a inclusão social de pessoas que, por falta de apoio, deixariam de empreender. Além do risco de estarem entre os 13,7 milhões de desempregados do país.
– Não importa o tamanho do negócio. Mas com ajuda, a gente prova que é capaz.